top of page

trem fantasma

rodrigo teaser no filme estados unidos do brasil de luna alkalay

.

CURVAS

cedo.jpg

Já tinha me acostumado com o Trem Fantasma. Todas as assombrações me eram familiares, amigas até. Eu sentia um prazer estranho toda vez que sentava no vagãozinho e partia para dentro daquela escuridão, daquele cheiro azedo de lugar parado, fechado, inerte. Os barulhos, gritos, toques rápidos me davam uma sensação agradável, quase acolhedora. Enfim, essa era a minha diversão favorita: lidar no breu com meus pequenos temores, com minhas frágeis fantasias. Até que um dia, ontem ou anteontem, não sei ao certo, na primeira curva, o terror me agarrou pelo pescoço e me sufocou até me deixar sem ar. Na primeira curva, onde antes não havia nada, eu vi teu rosto. Como se tudo parasse, como se eu tivesse voltado para aquele tempo de indiferença, de dor. O trem seguiu entre monstros e caveiras. Eu não. Fiquei grudada naquela curva, estatelada pela milésima vez, as narinas explodindo do perfume que levei tanto tempo pra tirar do travesseiro. Na segunda curva fechei os olhos e quando os abri a curva tinha aumentado de tamanho e o vagãozinho se retorcia arranhando os trilhos. E lá estava você novamente. Dessa vez gritei de medo de rever no teu rosto a minha própria morte. Lembrei de respirar fundo como venho fazendo desde então. Uma, duas, cem vezes. Recuperei os sentidos, a consciência, a minha identidade. Na terceira e última curva, as luzes não acenderam, os gritos se calaram. Cheguei ao final do percurso e o trem deslizou para a luz da tarde. Não sei como desci do vagão sem cair. Corri para a bilheteria e comprei outro ingresso. Precisava te ver de novo. Precisava morrer mais um pouquinho.                          

texto

L.A.

SERÁ QUE ELES ACORDARAM?

Ana desce do trem na estação de várzea com os dois filhos pequenos. Segue com o mais novo no colo e o mais velho puxado pela sua mão firme. Corta caminho pelo mato fedido, passo apressado, respiração ofegante. Chega ao parque de diversões bem na hora de acender as luzes e pôr a fantasia pra funcionar.  No contêiner número 05, as mulheres vestem uniformes, pintam a boca e enfiam as perucas. Ana deita as crianças no pano vermelho de uma cortina aposentada e da sacola tira os travesseirinhos e um cobertor puído já sem cor nenhuma. Dá o peito pra um, a mamadeira pro outro. As crianças mesmo assustadas, adormecem. Ela veste o maiô. Lembra da mãe, da casa no interior da infância, no interior do mundo. Lembra de quando era bonita e sonhava com as coisas que ela acreditava ter direito. Sai do caixote, fecha a porta e vai para seu posto. Tenho um emprego, sorri. O público entra. Ana apressa o passo até chegar a uma escada de quatro degraus. Sobe e entra no espaço escuro e vazio. Do lado de fora o público reclama, grita, xinga. Ela vê a marca no chão, vai até as barras de ferro e segura firme. O som da selva aumenta, as luzes acendem sobre ela e Ana vira Monga, a Gorila. Abrem as cortinas, ela urra no microfone dependurado no alto da cabeça. Urra mais forte que pode, urra do fundo do nó do peito, da mágoa espessa. O público se cala e recua assustado. Será que as crianças acordaram? Raios, trovões, sons da selva, tambores. E Ana urra a não parar nunca mais. As crianças acordam e se abraçam. Passados três minutos as luzes da noite se apagam, amanhece na jaula. A mulher comum de maiô preto de lã solta as barras de ferro e encara o infinito de pé sem nenhuma pose. O público desapontado se afasta. No contêiner os meninos dormem. Ela olha para sua própria imagem no espelho. Senta pra esperar a próxima apresentação com as pernas bem abertas. Na altura da virilha, o elástico amolecido deixa escapar uns pentelhos. Entre eles o primeiro pentelho branco. Ana fecha os olhos e não sonha. Por incrível que pareça, é feliz.

IMG_6919_edited_edited.jpg

L.A.

SANGRIA

selma egrei e fernando peixoto em fragmento do filme 'sangria', de luna alkalay

ESPELHO MEU

IMG_6919.JPG

VEJA-SE NOITE

ONDE SE VÊ DIA

F.A.

'onde se vê dia, veja-se noite', de felipe abramovictz e lívia gijón

.

.

ENTRANHAS

Era domingo, daqueles que fazem o céu ficar sem cor. Era aniversário de meu irmão mais velho, que insistiu para que saíssemos para que ele pudesse encontrar uma moça com quem havia estado na noite anterior. Fomos ao parque antes de escurecer, caminhando em silêncio. Foi o dia que escureceu mais cedo durante toda a semana, e o ar abafado dava a impressão que a cidade tivesse momentaneamente parado. Em meio aos brinquedos, um chão de pedregulhos nos levou ao balcão de fichas. Colado na parede um aviso: a Monga não estava aceitando mais visitas. Ao fundo, enquanto meu irmão se aproximou do bilheteiro para lhe fazer alguma pergunta, encarei nos olhos duas moças que saíam do fundo da atração, com roupas idênticas, carregando enormes sacos pretos. Elas se beijam lascivamente. Vejo a primeira delas, antes de virar um vulto, ser seguida por um homem de capuz na frente da inscrição que identificava o lugar como o Palácio do Suspense. O nome continua a ressoar em minha cabeça até notar que a moça vem na direção do meu irmão e o chama pelo nome. Noto a maquiagem borrada perto dos seus cabelos e marcas roxas em seu pescoço. O bilheteiro os encara e, de forma brusca, meu irmão me pede para esperar. Passo em frente ao vendedor de maças do amor e noto uma poça de groselha no chão. Atravesso a alameda e vejo uma venda, que parecia ser uma floricultura. No balcão, fileiras de plantas carnívoras dos mais variados tamanhos, expostas em pequenos vasos de plástico. Escolho uma, sento ao lado da sarjeta e lhe sirvo a primeira oferenda: uma formiga, retirada arbitrariamente com um galho da fila que a levava para o canteiro ao lado. De olhos atentos, desejava ver a planta devorar o animal. Então, enfiei cuidadosamente em sua garganta até que desaparecesse. E desapareceu. Diante de mim, o movimento de torção gerou uma espécie de maravilhamento. Com olhar atento, vejo seus pelos se moverem lentamente até a boca se fechar em um ritmo lento de mastigação. Volto para casa sozinho, coloco a planta em cima da mesa e me dirijo ao banheiro. Encontro meu irmão se depilando diante do espelho, em prantos. Ele não me vê. Desperto durante à noite e resolvo alimentar mais uma vez a planta com um inseto que aparece na cozinha. Aguardo o movimento de torção da planta em um instinto quase sádico e me lembro de A Pequena Loja dos Horrores. Mas a planta não se move. Nos dias seguintes, continuo a alimentá-la com todo tipo de moscas e noto que a folha parece mais pálida. A mesa, contudo, permanece cada vez mais cheia de formigas, que à principio pareceram ser o único alimento que a teria agradado. Vejo uma fila delas subindo em direção ao caule, como se girassem em torno do seu pescoço. Na manhã seguinte, a planta definhava. Olho para dentro de suas entranhas e vejo centenas de formigas a devorando e carregando os insetos que haviam nela, ofertados por mim. Jogo a planta no lixo, ligo a tevê e vejo uma notícia sobre a morte da Monga do parque, a qual teria sido estrangulada por seu gorila. No retrato falado, um homem de capuz aparece como o suspeito pelo estrangulamento.

F.A.

cortante_edited.jpg

RANHURA

'ranhura', de felipe abramovictz 

A DOSE EXATA

Era meio-dia. O parque de diversões tinha acabado de abrir. O gerente, acompanhado por um segurança que mais parecia um capanga de um filme de gangster americano dos anos 1930, foi o responsável por soltar a corda que impedia o acesso aos brinquedos durante a noite.

Talvez os momentos mais tristes de um parque de diversões estejam justamente na hora de sua abertura e do fechamento. Com o sol a pino e a maioria dos brinquedos fechados, a música alegre escolhida para acompanhar a voz do locutor para anunciar o show da Monga, a mulher gorila, parecia destoar do ambiente. Um único espectador se apresentou na bilheteria, comprou o ticket e esperou um longo tempo até as portas se fecharem. Ao sair, instado a correr, ficou um logo tempo fitando o desenho da jovem moça na porta. Em frente ao portão, permaneceu estático, tentando espiar pelas frestas a cada nova sessão. Estava decidido a avisá-la que estaria a sua espera ao final do expediente. Mas a cada entrada, só encontrava o seu algoz gorila esbravejando em sua direção, com espuma saindo por sua boca. Ao entardecer, estava determinado a buscar formas de conseguir falar com ela antes da transformação. Esperou o público entrar, se sentar, e assim que a Monga apareceu na jaula, correu em sua direção. As luzes se apagaram e pode sentir sua imagem se estilhaçando em suas mãos. Gritos do público ecoaram e, em meio às vozes, ouviu um sussurro o convidando para estar no labirinto de espelhos assim que o parque fechasse.

uma leitura transatlântica de A DOSE EXATA de luna alkalay [uma conexão SP-Lisboa com paula guedes, vanderlei bernardino e felipe abramovictz]

bottom of page