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as fatias de pão - a literatura de lisa abramovictz

projeto "as fábulas da minha vó"

felipe abramovictz (org.)

“As Fatias de Pão - a literatura de Lisa Abramovictz” surgiu após a descoberta por Felipe Abramovictz, de uma série de manuscritos de três livros de ficção escritos pela sua avó ao longo dos anos 1970 e início dos anos 1990 em caixas guardadas até então no porão. Ao longo de meses, páginas inicialmente dadas como perdidas foram enfim localizadas. Além das obras de Lisa Abramovictz, que surpreendem pelo frescor e pela maneira como retrata os traumas das diásporas a partir de um ponto de vista da comunidade judaica e suas tradições, entre as quais o vocabulário em iídiche, constarão textos escritos por seu neto, que refletirão a experiência a partir do percurso afetivo em torno do imaginário dos livros de família.​

SOBRE OS LIVROS

O livro “As Fábulas da Minha Vó”, propõe um percurso afetivo entre o organizador, Felipe Abramovictz, e três obras de ficção escritas por sua vó, Lisa há mais de três décadas, permaneciam inéditas, em sua versão manuscrito. O primeiro texto a ser apresentado, “A Pequena Ilha de Pedra”, é um relato ficcional ambientado na Sevilha medieval que introduz a constante aflição vivida por uma comunidade judaica sob o perigo e a opressão que ainda hoje são sofridos por refugiados obrigados a abandonar seus locais de origem. A obra de Lisa, que aborda o momento em que os judeus foram expulsos da judiaria de Sevilha e obrigados a emigrar, narra a história de duas gerações de uma mesma família em busca de uma maneira de resistir ao autoritarismo e à repressão daqueles que não lhes permitiam exercer sua fé e sua cultura. Foi concebido a partir do resgate de histórias orais da tradição judaica e de uma pesquisa historiográfica densa sobre o gueto de Sevilha. É uma ficção repleta de humanismo na qual ela reflete a eterna opressão vivida pelas comunidades judaicas ao longo de várias gerações. “Dezoito minutos antes do pôr do sol”, segundo texto que compõe a edição do livro, é ambientado num vilarejo da Bessarábia na primeira metade do século XX. Na obra, as vivências de 25 famílias judias em meio às transformações sofridas pelas duas Grandes Guerras e Revoluções. Histórias de violência, mediadas pelo senso de comunidade daquelas famílias, que pouco a pouco são esfaceladas pelos conflitos e pelo antissemitismo. Por fim, “Os Castiçais da Vovó – Sete contos e uma história real”, obra estruturada a partir de histórias vividas e ouvidas pela autora. Contos, encontros e encantos, para todos os públicos e idades. Em destaque, o conto que dá nome ao livro e “O contador de histórias”, nas quais ela ficciona a sua própria história.
Esperamos que os livros possam permitir que a obra de Lisa seja enfim lida, debatida, como fabulada pela autora há mais de trinta anos. Dar vida às narrativas escritas é, sobretudo, uma homenagem à fabulação. Se em vida Lisa não conseguiu que sua literatura fosse lida nem pelo núcleo familiar mais próximo, o lançamento cuidadoso de suas histórias poderá mitigar esse silenciamento, que coincidentemente ou não, é o tema que ecoa ao longo das três obras.

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INTRODUÇÃO
FELIPE ABRAMOVICTZ

Lascia. Elisa. Lisa. 1995. Visita à casa dos avós. Rastros de memória, talvez as primeiras, as mais antigas. Bairro da Pompéia, São Paulo. Objetos por toda a parte: uma estátua branca de um cachorro, um espelho serigrafado com réplica de Alfons Mucha, um porta-retrato com a fotografia de um passeio em Poços de Caldas.

Ao lado da porta, uma cadeira. Rebecca, minha bisavó, onipresente e atenta. Palavras em iídiche. Ao fundo, o quarto dos meus avôs, Leão e Elisa, como Lascia gostava de ser chamada. Uma grande cômoda, com os nove tomos da coleção “Judaica” e um livro encadernado escrito a máquina com inúmeras marcações a caneta. O livro da minha avó. Ou melhor, os livros. Tempo em suspenso. Desejo de me sentir presente.

Os álbuns de fotografia postos na mesa. Do porão, caixas de  papelão tomam a sala. 1940, Bom Retiro. 1960, Rua Clélia, Lapa. Ou melhor, Vila Romana. 1890, Bessarábia. Rostos que nunca conheci. 1980, Caxambu. Não. São Lourenço. 1990, imagens de uma viagem para Caldas Novas, meus avós vestem roupões. 1970, Candy, a cachorra sobre a qual ouvi tantas histórias, encara a câmera. 1920, em  um reflexo de um espelho, os bisavós que nunca conheci.

No fundo da caixa, alguns manuscritos. Conto as páginas. A história parece não ter fim. Páginas soltas lembram aquelas vistas na gaveta de meu pai, esparramadas por todo canto. Encontro outro caderno escrito a mão. Depois, mais um. Contos. Sete contos. E uma história real.

Por fim, um terceiro, acompanhado de um envelope que revela que o conto ali contido havia sido enviado a um concurso. Ao fundo, a encadernação se une a outro caderno, volto os olhos para a palavra Fim. Reúno os três manuscritos, diante da descoberta. “O livro da minha avó” que povoava as lembranças da minha infância, na verdade, eram três. Ou dois e meio.

Vasculho as gavetas do quarto do meu pai. Contos de dez anos atrás, fotografias, antigos exames médicos e receituários. Vestígios de traças atravessam as páginas espalhadas no fundo da gaveta. Pouco a pouco, folheio as páginas que encontro, tentando ao máximo reunir todo possível, reconhecendo pela primeira vez a grafia da minha vó.

É preciso ordenar, juntar. Fixo os olhos nas numerações das páginas, certo que aquele livro escrito a máquina se tratava do manuscrito que sempre permanecerá ao lado da cama dos meus avôs. 4-60. 68-120. 162. FIM. 161. 147. 146. 145... Junto os pedaços, 10 anos que vi aqueles escritos pela última vez. Ou seriam mais? Faltam páginas. A capa enfim aparece. Num Gueto da Idade Média. Lisa Abramovictz. Será que fomos tão próximos? Em seguida, mais uma capa, sinalizando que o título já era outro.

Nas anotações a caneta, a palavra gueto dá lugar à juderia, depois a uma pequena ilha de pedra. A gaveta é tirada para fora da cômoda. Ao fundo, mais páginas. Alívio. O quebra-cabeças se fecha. Coloco o livro ordenado em uma pasta. Cinco minutos depois, reabro a pasta e começo a leitura, reticente de que aquele  gesto pudesse desfazer o encanto do desconhecido.

Penso na escolha de palavras, na forma como os parágrafos estão dispostos na página, nas curvas das letras “L”. Prossigo e cada vez me sinto mais distante da cômoda do quarto de minha avó e sou levado a outros tempos, outras histórias. Sigo diante dos  manuscritos por horas a fio, até a última página.

No dia seguinte, transcrevo o título para o computador e, página a página, releio todo o livro enquanto digito. Provando o gosto de um sonho interrompido, do não-concluso, do livro engavetado, guardo os manuscritos na pasta. Levo a pasta novamente  para a caixa de papelão junto das fotos de família.

A caixa volta ao porão. Volto ao computador, abro o e-mail, anexo o arquivo. Com a lista de destinatários em branco, encaminho para meu próprio e-mail. Sem assunto. Recebo o mesmo. Abro o arquivo, pela primeira vez me apropriando daquelas palavras.

Lisa, Elisa, Lascia, nunca me pareceram tão familiares.

NUVEM DE AFETOS

LUNA ALKALAY

Ao apresentar os livros de Lisa Abramovictz, prosseguimos com nossa proposta de resgate de livros de família dando voz a escritos esquecidos em inúmeras gavetas em inúmeros abandonos. Relatos que não só recuperam trajetórias plenas de memórias e de sabedoria como de grande qualidade literária e valor histórico. Estejam disfarçados em receitas ou diários de uma vida, eles traduzem momentos significativos da trajetória de suas autoras.

Escritos singelos e sinceros nos possibilitam a aproximação com nossa própria formação e com o percurso que essas mulheres foram capazes de expressar. Lisa Abramovictz, para nossa surpresa, optou por criar uma ficção repleta de humanismo na qual ela reflete a eterna opressão vivida pelas comunidades judaicas ao longo da história. Ao localizar seus romances na Sevilha medieval ou num pequeno vilarejo da Bessarábia nos anos 1910, Lisa Abramovictz fala forte e alto dos perigos, desafios, medos que ela, sua família, assim como tantas outras tiveram que enfrentar nas diásporas que até hoje afligem imigrantes obrigados a abandonar seus locais de origem.

Lisa e tantas outras autoras à espera desse resgate têm o que dizer e merecem ser ouvidas em tempos difíceis como estes em que nos encontramos. 

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